Não se pensa muitas vezes sobre o tema, ou, quando
pensamos, não descortinamos de imediato a razão pela qual, durante os últimos
anos, a palavra esteve arredada da rádio. A razão, aparentemente elementar, não é simples de
perceber: efectivamente, não foi exactamente a palavra que esteve arredada da
rádio, mas antes as estratégias de programação que se orientaram num sentido
mais musical, dando pouco espaço à criatividade dos locutores e, portanto,
limitando a palavra. Sobre esta questão, as opiniões não serão
consensuais: houve quem tivesse afirmado que o desafio da criatividade era
exactamente o de ser criativo no pouco tempo disponível para falar e perante a
limitada liberdade do que havia para dizer. Contou-me uma vez José Carlos
Malato que o locutor teria a tarefa de encontrar o seu espaço criativo a partir
de uma base pré-preparada que o programa de computador lhe dá. Não discordo da
rádio musical, menos ainda da utilização da playlist. Desde que encarada como
uma ferramenta de trabalho e estruturada de forma a facilitar, sem limitar, o
trabalho dos profissionais da (neste caso, na) rádio. Talvez por influência do recurso a empresas de
consultoria e estudos de mercado no sector da rádio, com o objectivo de
optimizar os recursos disponíveis, segmentar as estações e as direccionar a
alvos específicos da audiência de rádio, a programação tenha mudado. Paralelamente, não serão poucos os estudos de
âmbito científico e relatórios profissionais - elaborados a partir de amostras
de maior ou menor dimensão - que demonstram que a música é efectivamente um dos
conteúdos mais importantes na rádio. Contudo, importa também dizer que são
igualmente esses estudos que revelam que a principal razão para ouvir rádio é a
companhia, seguida da selecção de outras opções, igualmente relacionadas com a
companhia, como "passar o tempo" ou "manter-me entretido". Conclui-se, assim, que a rádio é um meio de
comunicação que nos faz companhia e serve para ouvir música. Ou que a música
que a rádio nos dá, também nos faz companhia. De qualquer forma, é neste
sentido que a rádio se tem orientado. Voltando ao início do artigo, a razão
para esta estrutura de programação pode resumir-se de forma muito simples, mas
não produzirá, a meu ver, uma resposta acabada. Por isso, convém reflectir
sobre os factos: não só a concorrência, em termos de número de estações de
rádio, cresceu muito rapidamente, de forma desregulada e desregulamentada, como
também, por outro lado, o país radiofónico foi seduzido por consultores que
consolidaram a ideia de que a música seria o melhor conteúdo para gerir a
programação. Efectivamente, a música é um conteúdo bastante
seguro; é fácil perceber quais as canções que têm maior ou menor sucesso junto
da audiência, mas não é assim tão simples encadear as músicas de forma a atrair
e fidelizar essa mesma audiência. São, no fundo, essas combinações musicais - e
não tanto as canções em si - que têm feito a diferença e ditado o maior sucesso
ou insucesso das estações de rádio musicais. Da mesma forma, a música é um conteúdo
relativamente barato, quando comparado a uma programação de palavra, com
produção e convidados, incluindo vários géneros de programas e uma equipa para
cada um deles, factor poderá ter também influenciado a orientação da
programação da rádio em Portugal. Por outro lado, e talvez esta tendência tenha sido
uma reacção quase inconsciente dos profissionais da rádio, para contrariar uma
tradição palavrosa da rádio, de uma palavra sem grande empatia com o ouvinte. O
formalismo da rádio, a voz demasiado colocada e a ideia de "voz de
rádio", foram substituídos por uma coloquialidade que abriu os microfones
da rádio a todos aqueles que sentiram que tinham algo para dizer. Ainda que, na
maior parte dos casos, nada tivessem para exprimir. O formalismo da rádio pré 25 de Abril, recheado de
subentendidos e limitações ao que se podia dizer, levou a um fenómeno de
extrema liberdade no qual todos podiam usar o microfone da rádio. Era o tempo
das rádios piratas. Da cacofonia, mas também das experiências e
experimentalismo, algumas das quais resultaram em projectos de rádio que, ainda
hoje, se distinguem no panorama radiofónico em Portugal. Não é absolutamente verdade que todos possamos falar
ao microfone. Para se fazer rádio é preciso paixão e vocação. É daquelas
profissões que necessita de vocação, alguma coisa que faz o click,
confidenciou-me um dia Miguel Quintão. Nem todos temos essa capacidade e
vocação. Falar ao microfone é uma actividade que exige rigor
e profissionalismo e, portanto, deverá estar reservada a quem tem um talento
inato para isso (que são poucos) ou quem se especializou para o fazer. Da mesma
forma que nem todos poderemos ser um chef de cozinha ou um contabilista. São exemplos que procuraram corroborar a ideia de
que, à aptidão, se junta a formação específica para desenvolvermos uma
determinada actividade profissional. E, ainda que projectos não profissionais
de rádio possam fazer sentido, especialmente no contexto actual, da rádio na
Internet, não é desse tipo de rádio de que aqui falamos. E, portanto, para além de, nessa altura, a rádio
ter sido inundada de amadores, que embora apaixonados pela rádio não eram
necessariamente bons locutores (sequer bons comunicadores) a rádio viu-se
também perante um fenómeno de excesso de oferta que não tinha compatibilidade
com a procura. Isto equivale a dizer que passámos a ter mais estações de rádio
do que aquilo que é possível a audiência do país ouvir e, portanto, assistiu-se
também a uma espécie de selecção natural das espécies, em que venceram os
melhores: as estações melhor preparadas, com maior capacidade financeira,
equipas mais criativas, mais dedicadas, no fundo, profissionais. E, quando a situação estabilizou, eis que o fenómeno
da concorrência não ficou por aqui. Perante um cenário em que continuavam a
existir mais estações de rádio do que aquelas que a audiência podia escutar, as
estações começaram a concorrer entre si. E, para uma competição adequada, a
rádio necessita de bons conteúdos. Para ter bons conteúdos tem de ter bons
profissionais que os produzam. Bons profissionais não trabalham na rádio em
tempo parcial, não são contabilistas durante o dia e locutores à noite ou,
sequer, trabalham apenas por amor à camisola (embora na generalidade, os
profissionais da rádio sejam, de facto, apaixonados pela rádio). Ter bons
profissionais na rádio implica um trabalho contínuo, de 24 sobre 24 horas,
formação e constante aperfeiçoamento das suas capacidades de locução ou
produção. Assim, qual a forma mais simples e mais barata para
se fazer rádio? Exactamente. Encadear discos, pôr música a tocar e dar-nos, a
nós, ouvintes, a sensação de que é isto que nós desejamos ouvir na rádio. Que
não queremos conversa, que não queremos palavra na rádio, que não queremos que
nos digam quase nada para além do essencial, que a rádio é um gira-discos e que
é para isso que serve. Nada mais errado. Talvez por isto, durante tantos anos a programação
radiofónica se tenha esvaziado de conteúdo. A música é um dos elementos da
linguagem radiofónica e não muito mais do que isso. Pode ser entendida como um
conteúdo, desde que à música juntemos a contextualização que o leitor de Mp3
não dá. Caso contrário, a rádio não é rádio, é um toca-discos, diria João Paulo
Meneses. Do ponto de vista técnico, uma rádio musical é uma rádio, mas que está
ausente na sua forma, disse-me um dia Fernando Alves. Para além da música, o silêncio, a palavra e os
efeitos sonoros também fazem parte da linguagem radiofónica; não são conteúdos
radiofónicos em si mesmos, são elementos que compõem a estrutura de comunicação
da rádio. É neste sentido que critico estações de rádio exclusivamente
musicais, mas não a utilização da playlist porque, um locutor, que saiba fazer
bom uso da palavra, não terá necessariamente de ser um melómano. Hoje, os tempos são de mudança. Desde há alguns uns
anos, os directores de programas perceberam (provavelmente sempre souberam) que
nas rádios exclusivamente musicais faltava alma e, ainda que não tenha sido um
acto reflectido ou concertado, começaram a inserir pequenos apontamentos de
palavra, modestas propostas que permitiram que a rádio passasse a ter caracterizadamente
uma programação apoiada em conteúdos, que misturam a palavra com a música, como
hoje acontece nas estações de maior audiência no nosso país. E são
efectivamente os conteúdos com palavra, não necessariamente de palavra, os que
têm maior sucesso entre nós. Mas, sobre isso, falaremos numa próxima crónica...
Paula Cordeiro
Investigadora e Coordenadora da Unidade de Ciências
da Comunicação no ISCSP
(Declaração de interesses: Paula Cordeiro é
actualmente a provedora do ouvinte na rádio pública. Escreve na qualidade de
investigadora na área da rádio)
Este artigo não foi escrito ao abrigo do Novo
Acordo Ortográfico
Fonte: Briefing
Mário Rui