Acho que nunca o tinha escrito,
ou mesmo dito publicamente. No entanto, há sempre uma primeira vez. Começaram
as aulas do ensino primário, agora dizem ser básico, não importa. Isso é apenas
oratória representativa pelo que mantenho a primária como pacífica. E venho à
estampa já que me alegra saber do contentamento dos que, pela primeira vez,
irão pisar chão que ensina. Os mais pequeninos, ladinos e gaiteiros, os pais
que experimentam nova fase de crescimento dos rebentos, os professores que
renovam a serenidade dos que não temem ensinar. Hoje, é assim. Mas já houve um
outro tempo, há muito tempo, em que passar a porta da escola era pôr os olhos
no chão para que o pudéssemos percorrer à vontade, mas só com o olhar. «Aqui
ninguém conversa, aqui ninguém dança, aqui ninguém ri, aqui ninguém canta, aqui
ninguém se distrai» - era esta a recepção do mestre-escola. Nesta
‘hospitalidade’, e na que se lhe seguia ao longo do ano, pequenino como eu era,
sentia retorcer-se no professor um temperamento insatisfeito que, raras vezes,
a sala de aula conseguia perceber, amansar sequer e muito menos alterar o senso
estético e a imperfeição da vida escolar de então. Sim, era isto no mais das
vezes o professor. Porque hei-de eu mentir? Descobrir-lhe um eflúvio capitoso
de cores, sorrisos, bondade, coisas que vibrassem para sempre na nossa
sensibilidade de meninos, era para mim um receio de trambolhão certo a que,
invariavelmente,se sucedia uma varada. Quando a cana caía sobre o dorso ingénuo
do puto, só uma espécie de sociedade de socorros mútuos, vinda das outras
carteiras da sala, poderia parecer-se como união lusitana de resistentes,
embora tal aliança não passasse enfim de um sonho. Aprendia-se nesse tempo?
Talvez, mas a medo, encolhidos num lote de actores que muitas vezes assistiam
impávidos, que não serenos, à moeda a pagar por tão mau feitio do ensinador. À
primeira vista até poderia parecer, na altura, e ainda hoje, que, de facto, num
país de analfabetos, esse seria um meio de instrução primária de primeira
grandeza. Mas não era e ponto final. Contudo não é para reclamar contra a
exorbitância do preço que eu avivo estes factos. Só a eles aludo por mera
comparação com os de hoje, diferentes para melhor, e daí ser outra a minha
intenção. Vim cá apenas para tirar da minha cabeça umas teias de aranha que
podem estar a tapar alguma da minha massa cinzenta, mas sobretudo para desejar
uma escola alegre, amiga, de ligação quase conjugal, a toda a meninice que a
vai habitar. Sejam felizes aprendendo.
Mário Rui
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