Diabo,
está frio, são três da manhã. Frio de um país que não conta com gente que o
aqueça, que o valorize, e ao invés só lhe mostra o bolor das trevas cada vez
mais presentes nas fundações já de si esboroadas de tantos invernos assassinos.
É um frio tenebroso eivado de temperaturas políticas mandantes e mandadas que
insistem em ocultar um nome temido e ao mesmo tempo desejado; corrupção. Aqui
reinará o sério, dizem uns, outros compram a lotaria do dia seguinte, apostam
na sorte do oculto, e quando ambos saem da loja dos acasos tudo o que se nos é
dado a perceber é que compraram bilhetes deveras premiados de ardis, astúcias e
falsidades. E assim fica a frieza de um país ainda e mais uma vez prenhe de
tradições não desejadas mas já esperadas, mão cheia de reticências que são a
chancela de um sítio de ilegalidades, de desesperanças, afinal o romance
glacial autor da própria história de muito do desprazer lusitano. Não sei se
somos mais que isto, mas juro que ainda podemos ser menos do que isto pois se
Alcácer-Quibir já foi nódoa que manchou brio e chão de cá, névoa maldita, nada
me garante que mais cerrado nevoeiro não venha de novo para depositar
finalmente a redacção da nação em tumba almofadada sobre a qual os
encadernadores de Portugal hão-de enegrecer o livro que vão escrevendo. Podemos
estranhá-lo, mas nunca desacreditar de tal baixeza, agora ao alcance apenas de
mais uma ou duas assinaturas de ultraje posto que servirão de cunho derradeiro
do que foi Pátria de gente e agora definha em pêlo, em estado de completa
nudez. E tenho a certeza, mesmo que me confranja, que tumba que enterre as
causas ímpias do nosso falecimento, será no dia seguinte talhão onde alguns
depositarão palmas, não aos restos do expirado, coitado, mas antes aos
artífices dos invernos assassinos que os lá puseram. Esses mesmos, hoje, como
lhes convém, estão já a preparar a placa evocativa do finamento de Portugal
para lá inscrever não o nome do pobre defunto, mas sim para apagar os nomes dos
respectivos artífices de tais invernos matadores. E destes últimos, na
inscrição, ler-se-á; «como é sereno e radioso o aspecto dos invernos augustos e
eternos que ajudaram a (a)fundar o nome de Portugal». A cena será solene, e o
gato ressonará, a vela apagar-se-á, a flor murchará, o coveiro dormita e entretanto
outros invernos assassinos virão. Ah, e ainda nos falta ouvir o que nunca
vimos, ler o que nunca ouvimos e ficarmos pasmados com o que nunca imaginámos.
Fomos e somos únicos, mas também uns ingénuos e assim nos vamos na admiração de
alguns mistérios pessoais que são selo carimbado de muitos nojentos carácteres.
Tenho frio, e muito medo das dentadas famintas dos invernos que arruínam.
Mário
Rui
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