CARTA AOS 19%
(Ricardo Araújo Pereira)
Caro desempregado,
Em nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo
para o sucesso económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho
exemplar, e o ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria
possível sem a tua presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a
ser feito um enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados
e, pelos vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes
trabalhar. O teu desemprego, embora possa ser ligeiramente desagradável para
ti, é medicinal para a nossa economia. Os investidores não apostam no nosso
país se souberem que tu arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a
pessoas desempregadas.
Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas
possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar
acima das nossas possibilidades. Começamos a perceber que as nossas
necessidades estão acima das nossas possibilidades. A tua necessidade de arranjar
um emprego está muito acima das tuas possibilidades. É possível que a tua
necessidade de comer também esteja. Tens de pagar impostos acima das tuas
possibilidades para poderes viver abaixo das tuas necessidades. Viver mal é
caríssimo.
Não estás sozinho. O governo prepara-se para propor
rescisões amigáveis a milhares de funcionários públicos. Vais ter companhia.
Segundo o primeiro-ministro, as rescisões não são despedimentos, são janelas de
oportunidade. O melhor é agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas
janelas de oportunidade que se torna difícil evitar as correntes de ar de
oportunidade. Há quem sinta a tentação de se abeirar de uma destas janelas de
oportunidade e de se atirar cá para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme
para pagar, e a melhor maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos
trabalhadores possa produzir. Aceita a tua função neste processo e não
esperneies.
Tem calma. E não te preocupes. O teu desemprego está dentro
das previsões do governo. Que diabo, isso tem de te tranquilizar de algum modo.
Felizmente, a tua miséria não apanhou ninguém de surpresa, o que é excelente. A
miséria previsível é a preferida de toda a gente. Repara como o governo te
preparou para a crise. Se acontecer a Portugal o mesmo que ao Chipre, é
deixá-los ir à tua conta bancária confiscar uma parcela dos teus depósitos. Já
não tens lá nada para ser confiscado. Podes ficar tranquilo. E não tens nada
que agradecer.
Mário Rui
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