«Em
todas aldeias ou povoados de pequena dimensão espalhados por esse mundo há
sempre a figura a que os franceses chamam com graça e carinho «l´idiot du
village», um personagem normalmente caracterizado por um atraso mental a quem
se permite tudo, se perdoam as faltas, se acha piada, se trata com carinho.
Estarreja
usufruiu durante muitos anos do inolvidável Quim Anão - sobre quem o Sérgio
Paulo escreveu magnificamente como é seu apanágio - de quem existe uma
excelente fotografia do António Lisboa, fotografia essa que nos recebia com
honra logo à entrada do seu estabelecimento.
A
propósito, estou a lembrar-me que conheço variadíssimas cidades onde são
imortalizadas no bronze ou na pedra e em lugar de destaque figuras
características ou lendárias que fazem parte do seu acervo cultural.
Recordo,
por exemplo, a enorme estátua dos músicos de Bremen (um burro, um cão, um gato
e um galo, uns em cima dos outros) que são personagens de um dos contos dos
irmãos Grimm (curiosamente avoengos de uma minha prima por afinidade) ou a
pequena Sereiazinha (sentada numa pedra à borda do porto de Copenhague), também
ela centro de um conto do meu predilecto Hans-Christian Andersen quem, no
século XIX, viajou por Portugal e deixou um belo livro com a descrição da sua
deriva por estas bandas.
Sendo
que vem de longe que Estarreja nunca prestou as devidas honras aos cidadãos
autóctones que ficaram na sua memória (quando eu era miúdo ouvia de quando em
quando o refrão local que rezava que Estarreja é má mãe e boa madrasta querendo-se
com isso dizer que ignorava os da casa e mimava os de fora que acolhia de
braços abertos) servindo de exemplo dessa aberração o facto de ter sido precisa
a iniciativa do Rotary Club para que o grande Francisco Barbosa tivesse um
busto na praça a que dá o nome.
Ora
tendo sido o Quim Anão alguém que foi marcante, à sua maneira, no historial de
Estarreja talvez fosse interessante que se lhe prestasse uma pequena homenagem
consubstanciada numa estatueta, pequerrucha que fosse, que o imortalizasse para
os que ainda o conheceram e o dessem a saber aos que não e aos vindouros.
E
acreditem que o estou a dizer com toda a sinceridade!
Talvez
fosse mais apropriado que esse busto comemorativo de uma personalidade tão
controversa como Simão Bolivar cuja única relação com Estarreja é ter lutado
pela independência de um país (que já foi riquíssimo e agora se arrasta numa
espiral de ablecta miséria que parece não ter fim) que recebeu muitos
conterrâneos nossos e se foi essa a motivação (que creio que foi) e já que estamos
nessa, então vamos lá a pôr estátuas de George Washington, do imperador D.
Pedro do Brasil, do General De Gaulle, do Chanceler Adenauer e sei lá quantos
mais que também nos deram casa e proporcionaram meios de fortuna.
Mas
para além do tal «idiot du village», todas as terras têm ou tiveram no seu seio
figuras que, não cabendo nesta designação, se consideram típicas e recordo uma
de quem vos vou contar uma pequena historieta.
Durante
a minha juventude encontrava frequentemente, principalmente ao fim da tarde, o
Zé Mulato.
O
Zé Mulato era um sujeito pacífico, cordato, afável e divertido, morador numa
casa modestíssima, de acordo com a sua condição, lá para os lados da Arrotinha,
com a sua mãe (uma senhora negra, viúva, de trato simpático e muito agradável
nas suas tristeza e humilde pobreza) e lá ia sobrevivendo como podia sem
trabalho fixo e aproveitando-se de uns pequenos biscates aqui e ali, ao serviço
de quem o chamasse.
Ora,
em determinada altura, veio viver para Estarreja para trabalhar no Amoníaco
Português como encarregado da biblioteca da fábrica, um tal Capitão Valadas,
criatura desagradável e de mau feitio que não deixou saudades a ninguém quando
desapareceu da circulação.
Vivia
num prédio onde viria a ter a sua sede a Casa do Pessoal da Cires mesmo por
cima da residência do Sr. Francisco Moura.
Um
belo fim de tarde, quase ao anoitecer, o Zé Mulato descia ziguezagueando a
então Rua da Vila, acabadas as suas libações de fim de tarde naquele
estabelecimento cujo nome não recordo mas que era um misto de taberna, salão de
jogos de matraquilhos e quejandos e “casa de virtude” que havia ao começo dessa
artéria, quando, inopinadamente tomba em cima do majestoso Studebaker negro do
Capitão Valadas que, felizmente, circulava vagarosamente já a dois passos de
casa.
Desaustinado,
o Capitão Valadas sai do carro e interpela desabridamente – diga-se que com
razão quanto aos factos que não aos termos - o Zé Mulato pela sua falta de
cuidado e atenção.
Se
havia coisa em que o Zé Mulato não era peco seria na sua bendita língua e vai
daí, a impropério responde com impropério.
Do
alto da sua arrogância o Capitão Valadas pergunta-lhe se sabe com quem está a
falar e declina a sua identidade ao que o Zé Mulato responde altaneiramente:
-
Ai é o Capitão Valadas? Pois eu sou o Santos Costa!
Ó
Zé Mulato!, o que tu foste dizer!
Falar
no Santos Costa ao Capitão Valadas era o mesmo que falar de corda em casa do
enforcado dado que o sujeito - não sei porquê nem nunca me interessou - tinha
sido expulso do Exército com desonra pelo então Ministro da Guerra Santos Costa
que não era nada meigo no exercício das suas funções.
Vai
daí, o Capitão Valadas não é de mangas e arrasta o Zé Mulato para o posto da
Guarda Republicana onde pontificava o “terrível” Cabo Santos (de quem
pessoalmente guardo muito boa memória) apresentando queixa por injúrias.
O
cabo Santos dá uns apertões ao Zé Mulato que tivera a ousadia de se mal
comportar com uma individualidade tão importante como o Sr. Capitão e, para
levantar o respectivo auto, pede-lhe o Bilhete de Identidade, solicitação a que
o Zé Mulato corresponde sem pestanejar.
Documento
na mão, o cabo Santos examina-o atentamente, olha para o Capitão Valados, olha
para o Zé Mulato, torna a olhar para o Capitão Valadas, mostra-lhe o BI do Zé
Mulato e, com o ar mais desconsolado desta vida, põe-lhe a questão:
-
Meu Capitão! O homem diz a verdade! Que é que o meu Capitão quer que eu faça?
Bem
escarrapachado na linha adequada constava o nome do cidadão: José dos Santos
Costa.
O
Zé Mulato era mesmo o Santos Costa (outro que não o do Capitão).
Furibundo,
cheio de raiva, e a deitar fumo, lá foi o nosso Capitão para casa e o Zé Mulato
fez o mesmo não sem antes ter passado pela Cova Funda para se confortar».
(Lopes
Rodrigues)
Mário Rui
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