Um dos textos daquele que foi o melhor
médico (na circunstância ginecologista) que encontrei em toda a minha vida.
Mostrou a luz do dia aos meus filhos e, como Homem e profissional, foi pessoa
de afagos nas mãos, a certeza na boca, a meiguice no semblante, o pensamento na
fronte. Custa-me que a Providência lhe tenha mandado despir a bata, as armas da
sua profissão, o seu saber e sobretudo a sua natureza humana. Estou-vos abrindo
um pouco do livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão
fiel da realidade desta versão rigorosa de uma das suas páginas de vida, com
que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como acto de fidelidade a quem deu
aos meus um mestrado de humildade e competência como nunca antes (e depois)
tinha visto. E de uma qualidade, ao menos, me posso abonar a mim mesmo: a de
exacto e consciencioso no expender e narrar sobre um ser inigualável, a quem
muito fiquei a dever. (23 de Janeiro de 2023)
Mário Rui
O PARTO NO TÁXI
Trabalhava eu numa Casa do Povo em
1968 em que dava consultas a numerosos doentes que aí acorriam. Uma bela tarde,
a funcionária entra pelo consultório dentro, afogueada, com voz ansiosa e diz,
interrompendo a consulta que eu estava a fazer:
- Senhor doutor, senhor doutor, está
uma mulher a dar à luz no táxi, aqui em frente.
Não havia alternativa. Levantei-me de
imediato, disse-lhe para chamar a enfermeira a quem pedi o material necessário
para a resolução daquele parto no táxi. Um parto no táxi. Só visto…
Saí do consultório, ainda sinto o
cheiro daquele outono a terra molhada. No Outono as cores das árvores e das de
folhas são muito bonitas, umas verdes outras amarelas outras castanhas outas
vermelhas. Ao recordar-me dessa época, vejo, como se fosse hoje, ainda aquela
latada de videiras em frente à Casa do Povo, já com folhas secas, sem uvas, que
tinham sido vindimadas e transformadas em vinho.
Dirigi-me para o táxi, ali mesmo em
frente ao posto médico, desci as escadas e tinha a sensação de que estava a
caminhar há longo tempo, de que tinha andado durante horas.
Sabia o que tinha que fazer mas sentia
medo do que pudesse acontecer naquele parto sem condições e não sabia o que se
iria surgir alguma complicação, uma vez que não tinha meios para socorrer em
caso de necessidade. Mas por outro lado, como médico e com alguma experiência
em Obstetrícia, eu seguia em frente, como se estivesse no cimo de um monte, a
ver nascer o sol e vê-lo andar em direcção ao horizonte. Só Deus sabe a
ansiedade e a angústia de ir entrar naquele táxi, onde uma criança estava a
nascer. Chegado ao táxi, o taxista não deixou de me censurar:
- Ó senhor doutor, entre depressa que
a criança está a nascer.
Eu lá entrei a mando do taxista, que
até perecia que era quem percebia do assunto. Tudo naquele momento, para mim
era pesado e muito intenso.
Uma vez no táxi, a tratar do parto,
tudo se tinha tornado claro, já nada era o destino, nem o taxista, era eu que
comandava tudo, era eu o responsável de tudo e de tudo o que pudesse acontecer.
A situação era tão bizarra que gostaria de não ser eu a estar ali, porque já
nada se sobrepunha a mim, já nada me substituía. Daí em diante eu é que seria o
responsável de tudo o que acontecesse.
Apoderou-se de mim uma solidão imensa,
que me deu um grande mal-estar, uma espécie de vazio onde eu nem sabia como me
mexer. Naqueles momentos eu só podia contar com as minhas forças. Estava eu
dentro do táxi a ajudar o parto daquela parturiente e percebi, então, que tinha
que ser eu a dar solução às dificuldades apresentadas. Tinha de me sentir
forte, apesar das contrariedades com que me deparava.
Aquela cabeça pequena saindo do ventre
daquela mãe, com cabelo escuro, a mãe a dar gritos a cada contracção uterina,
obrigaram-me a fazer aquele parto, com o “mirone” do taxista, sempre a
espreitar com a boca aberta de admiração, que ainda hoje recordo.
Estava a meu lado a enfermeira da Casa
do Povo.
Lá nasceu aquele rapaz com 3,650 Kg.
Depois foi suturar a pequena laceração
que a mãe teve com o parto, mas sem antes assistir ao dequite, que o mesmo é
dizer, fazer sair a placenta para que tudo ficasse completo.
Felizmente, apesar das contingências,
tudo correu bem. Filho e mãe ficaram bem. Enquanto fazia aquele parto no táxi,
tinha ali especado o taxista de boca aberta, e a enfermeira a dizer-me coisas
que não se coadunavam com a emergência da situação, porque queria mandar a
mulher para o hospital mais próximo com a cabeça do bebé, já, cá fora.
Ouvia o rumor de vozes de gente que se
aglomerou à volta do táxi, espero que a dizerem bem da minha actuação, ouvia o
ladrar do cão mais abaixo na aldeia e o badalar do sino a dar as horas, 4 horas
da tarde. Foi nessa hora em que aquele bebé veio ao mundo.
Sentia alegria sim, mas não euforia
nem exaltação, nem me considerava mais sábio. O que havia dentro de mim naquela
hora era uma serena paz de ter cumprido o meu dever e de ter ajudado aquela mãe
a dar à luz o seu filho naquele táxi.
Depois de tudo passado, eu já não me
apetecia sair do táxi.
O táxi era meu… Eu era agora o dono
daquele táxi, como se este fosse uma clínica em que nasciam bebés. O taxista
que se lixasse, ficava lá fora. Ele já não mandava nada. O táxi era a minha
clínica naquele momento.
Agora tudo era bom, leve e mágico.
Apetecia-me ficar ali para sempre, a festejar aquela vitória dum parto num
táxi, como que a viver a vida no seu momento mais sublime. A felicidade traz
sempre ou por vezes, desejos contraditórios. Foi por ter estado sob grande
pressão pela falta de condições e meios que depois de tudo acabar bem a vitória
tem um sabor muito sublime. Tudo foi naqueles minutos árduo e intenso. Tudo
para mim se tinha tornado claro e difícil. Mas nem tudo o que acontece é fruto
da nossa vontade, é-nos imposto e temos que lhe dar saída. São as contingências
da vida.
Este pensamento andou comigo até à
manhã do dia seguinte. Sonhei com esse parto no táxi, acordei várias vezes
nessa noite, mas de manhã encontrei-me, de novo, com a realidade da vida e do
mundo. Voltei a viver o meu dia-a-dia como se nada tivesse acontecido no dia
anterior.
Dr. António Bacelar Antunes
Mário Rui
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