sábado, 13 de agosto de 2011

Tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
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Dos pobres e dos outros

Li hoje no jornal “Público” um artigo assinado por uma tal Sr.ª de São José Almeida que, francamente, me deixou enojado, é o termo, e onde a tal articulista se debruça sobre o Plano de Emergência Social que o Governo se propõe levar a cabo. Trata-se de um artigo extenso mas, para o caso, só me interessa falar um pouco a propósito de certas opiniões lá retratadas e de alguém que de facto me parece, posso estar enganado, da chamada esquerda caviar.


Se realmente isto é escrito por alguém que, na minha opinião, em muito se assemelha a uma certa esquerda bem instalada na vida, então até eu gostaria de, pela primeira vez, me filiar num desses partidos. Não sei se seria possível fazê-lo ao sábado mas, mesmo assim, talvez estivesse na disposição de hoje mesmo me munir de cadeira e guarda sol e por lá ficar até que as portas para a minha inscrição se abrissem. Provavelmente só na próxima segunda-feira.


E porque é que a senhora escreve o artigo? Porque se lembrou disso quando ouviu esta semana falar em algumas medidas do Plano de Emergência Social, governamental, para acudir à pobreza.


E porque é que a senhora se indignou tanto com este plano? Porque lhe lembra o "conceito de organização social que lhe está subjacente, uma organização da sociedade que aceita como normais as desigualdades sociais, para quem a existência de classes ou grupos sociais com direitos diferentes é da "ordem natural" do mundo ( conceito que de natural nada tem, e que procura ignorar que as sociedades humanas são construções obtidas da capacidade de racionalização e de abstracção do intelecto humano" ( sic).


Está aqui resumida a essência da ideologia de esquerda: a igualdade como conceito normativo e a forma de a combater, racionalizando e abstraindo...

Mas diz mais a erudita articulista : “é essa normalidade da desigualdade, essa aceitação de que há pessoas diferentes, que não podem ser iguais a nós – os que temos acesso a trabalho e a meios de sobrevivência -, essa conivência com a ideia de que há uns pobres que vivem das esmolas e dos restos, das sobras dos ricos ou dos remediados, salta de forma brutal e é recuperada enquanto conceito de análise e de organização social, quando se observa algumas medidas do chamado pelo Plano de Emergência Social (PES), apresentado nas linhas gerais pelo ministro Mota Soares.”


O que é curioso e ao mesmo tempo revoltante, é que a tal normalidade da desigualdade e essa aceitação de que há pessoas diferentes, que não podem ser iguais a nós, é-nos dada justamente por esta senhora que, segundo o escrito no seu artigo, tem ou tinha um irmão, lá na casa enorme onde viviam cheia de gente, numa família grande, que uma bela noite, já passava do jantar entrou pela porta dentro com três miúdos pela mão, descalços, sujos e ranhosos. Desde logo, minha senhora, antes de dizermos o nome dos outros é bom que nos demoremos um momento a lembrar a impressão que sentimos na presença da incomensurável tragédia humana.
Não seriam certamente descalços, sujos e ranhosos mas talvez antes a verdadeira significação de tão brusco despertar da tal tragédia humana de que falei há pouco. É diferente, não é?

Os meus pais não estavam e as empregadas (a Celeste e a Maria), ter-se-á enganado ou as suas criadas deixaram de o ser para serem só empregadas e, quiçá, como era corrente ao tempo (finais dos anos sessenta), nem por isso receberiam pelo trabalho que faziam porque para quem é de esquerda os privilégios dos pobres são o de trabalhar e não refilar, entraram em pânico com a novidade que o “menino” tinha inventado. Depois, acrescenta, que o “menino” meteu os três miúdos (evolução linguística natural de pessoa de teres e saberes) na banheira, encheu-os de champoo e sabonete e esfregou-os arduamente enquanto eles mudavam de cor. Vejam bem, de champoo e sabonete, qual epopeia homérica para aqueles três miúdos que mudaram de cor. Que jornalismo cretino!


Bem, sinceramente já nem me apetece acrescentar muito mais às minhas ortodoxas reflexões sobre o artigo do jornal e especialmente sobre a postura de quem assim escreve. Do PES, o tal plano de que a senhora muito desconfia, também não tenho vontade de o dissecar até porque ainda o não conheço.

Até pode ser mau, contraproducente, até pode ser uma segunda edição da sopa dos pobres dos anos sessenta. Logo veremos.


Agora, aquilo a que não deveríamos assistir no ano da graça de 2011 do século XXI, era a esta cultura de ópera com que frequentes vezes somos brindados por alguns articulistas.


Há gente pobre, muito pobre? Há, sim senhora! Há gente a quem a natureza humana nos obriga a ajudar? Há! E todos juntos havemos de o fazer, ainda que a história dos nossos dias acabe por ser um sem-número de pequenas cobardias, um sem-número de pequenas preguiças. Agora, o que a história dos sobreviventes das actuais calamidades não há-de ser é fingimento.


Por último e a quem interesse, deixei de gostar dos artigos escritos por esta senhora.Entendo que o que escreveu hoje, fere a sensibilidade dos que têm algum orgulho e estima própria, ainda que sejam pobres, descalços, sujos e ranhosos. Mas saiba a senhora que, mesmo assim, é mais difícil ferir a vaidade dos pobres quando foi ferido o seu orgulho.

Mário Rui

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