sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O galo



Não vos falei há uns tempos atrás de um galo que persistentemente insiste em cantar durante a noite? Vá lá eu saber a razão para tal cantoria e a desoras. Alguma razão ele deve ter para se atrever a fazê-lo, de resto motivo pelo qual até não me dá para o mandar calar.

Não me incomoda nada esse cântico nocturno. Bem pelo contrário, como durante o dia não me é possível sentir, do modo como gosto, a marcha inexorável dos rituais campesinos do lugar onde moro, até me dá algum consolo ouvi-lo.

O galo não é meu, mas antes de um vizinho que há relativamente pouco tempo se instalou de armas e bagagens perto de minha casa. Quanto à dita ave, um galo é uma ave? sempre que se põe a cantar, recorda-me os dias da minha infância em que, no quintal de meus avós e vizinhos vários, a sinfonia de bucólicos e pachorrentos dias se fazia destes e de outros sons, sons que vinham da natureza então muito mais limpa e sadia que a que vivemos hoje.

Pode parecer poesia mas a verdade é que a tudo isto se juntava periodicamente o sino da minha aldeia. E digo aldeia, como aliás já o fiz em anterior crónica, porque gosto de chamar lugarejo ao sítio onde vivo. É como que uma espécie de arte deveras considerável que raramente se encontra e à qual eu me orgulho de pertencer.

Vive-se bem no seio de gente simples e do galo que entoa canções de embalar. Ah. Já agora deixem-me que lhes diga que nas grandes cidades, vive-se mal entre os homens. Há-os demasiados com cio.

Mas regressemos então ao galo. Vou deixar que ele continue a cantar ao longo da noite porque eu também quero voltar à natureza. Mas essa volta não significa ir para trás, mas sim para a frente. Admito estes encantatórios e doces sons porque se se tratasse de ruídos então outro galo cantaria.

É que o ruído mata os pensamentos. Dito tudo isto, continuo mesmo assim algo intrigado com a cantata nocturna do meu amigo . Mas julgo perceber uma parte dessa cantata. É que a ave também dança, ou pelo menos assim me parece e aquele que dança é nos dedos dos pés que traz os ouvidos.

Talvez esteja aí a explicação para a tal sinfonia da noite. O galo canta, o galo dança, mas para se ouvir a si próprio é-lhe favorável a escuridão e o maior silêncio que a noite sempre arrasta consigo. Grande galo! Só agora começo a perceber uma coisa.

É que por maior que seja o mal que os maus possam fazer, e o galo não é desses, o mal feito pelos bons é ainda o pior dos males. E este meu amigo, mesmo fazendo com que eu por vezes acorde e depois redurma, faz-me o favor de, com os seus sons, me obrigar a pensar para além do que me conheço. É bom isso.

É uma ilusão do contemplativo mas é também um modo de ver, de ouvir, pensando. Vou procurar continuar a pensar... O galo há-de continuar a cantar. Não serei eu a tirar-lhe esse prazer.


Mário Rui