sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A palavra de volta à rádio





















 
 
  
Não se pensa muitas vezes sobre o tema, ou, quando pensamos, não descortinamos de imediato a razão pela qual, durante os últimos anos, a palavra esteve arredada da rádio. A razão, aparentemente elementar, não é simples de perceber: efectivamente, não foi exactamente a palavra que esteve arredada da rádio, mas antes as estratégias de programação que se orientaram num sentido mais musical, dando pouco espaço à criatividade dos locutores e, portanto, limitando a palavra. Sobre esta questão, as opiniões não serão consensuais: houve quem tivesse afirmado que o desafio da criatividade era exactamente o de ser criativo no pouco tempo disponível para falar e perante a limitada liberdade do que havia para dizer. Contou-me uma vez José Carlos Malato que o locutor teria a tarefa de encontrar o seu espaço criativo a partir de uma base pré-preparada que o programa de computador lhe dá. Não discordo da rádio musical, menos ainda da utilização da playlist. Desde que encarada como uma ferramenta de trabalho e estruturada de forma a facilitar, sem limitar, o trabalho dos profissionais da (neste caso, na) rádio. Talvez por influência do recurso a empresas de consultoria e estudos de mercado no sector da rádio, com o objectivo de optimizar os recursos disponíveis, segmentar as estações e as direccionar a alvos específicos da audiência de rádio, a programação tenha mudado. Paralelamente, não serão poucos os estudos de âmbito científico e relatórios profissionais - elaborados a partir de amostras de maior ou menor dimensão - que demonstram que a música é efectivamente um dos conteúdos mais importantes na rádio. Contudo, importa também dizer que são igualmente esses estudos que revelam que a principal razão para ouvir rádio é a companhia, seguida da selecção de outras opções, igualmente relacionadas com a companhia, como "passar o tempo" ou "manter-me entretido". Conclui-se, assim, que a rádio é um meio de comunicação que nos faz companhia e serve para ouvir música. Ou que a música que a rádio nos dá, também nos faz companhia. De qualquer forma, é neste sentido que a rádio se tem orientado. Voltando ao início do artigo, a razão para esta estrutura de programação pode resumir-se de forma muito simples, mas não produzirá, a meu ver, uma resposta acabada. Por isso, convém reflectir sobre os factos: não só a concorrência, em termos de número de estações de rádio, cresceu muito rapidamente, de forma desregulada e desregulamentada, como também, por outro lado, o país radiofónico foi seduzido por consultores que consolidaram a ideia de que a música seria o melhor conteúdo para gerir a programação. Efectivamente, a música é um conteúdo bastante seguro; é fácil perceber quais as canções que têm maior ou menor sucesso junto da audiência, mas não é assim tão simples encadear as músicas de forma a atrair e fidelizar essa mesma audiência. São, no fundo, essas combinações musicais - e não tanto as canções em si - que têm feito a diferença e ditado o maior sucesso ou insucesso das estações de rádio musicais. Da mesma forma, a música é um conteúdo relativamente barato, quando comparado a uma programação de palavra, com produção e convidados, incluindo vários géneros de programas e uma equipa para cada um deles, factor poderá ter também influenciado a orientação da programação da rádio em Portugal. Por outro lado, e talvez esta tendência tenha sido uma reacção quase inconsciente dos profissionais da rádio, para contrariar uma tradição palavrosa da rádio, de uma palavra sem grande empatia com o ouvinte. O formalismo da rádio, a voz demasiado colocada e a ideia de "voz de rádio", foram substituídos por uma coloquialidade que abriu os microfones da rádio a todos aqueles que sentiram que tinham algo para dizer. Ainda que, na maior parte dos casos, nada tivessem para exprimir. O formalismo da rádio pré 25 de Abril, recheado de subentendidos e limitações ao que se podia dizer, levou a um fenómeno de extrema liberdade no qual todos podiam usar o microfone da rádio. Era o tempo das rádios piratas. Da cacofonia, mas também das experiências e experimentalismo, algumas das quais resultaram em projectos de rádio que, ainda hoje, se distinguem no panorama radiofónico em Portugal. Não é absolutamente verdade que todos possamos falar ao microfone. Para se fazer rádio é preciso paixão e vocação. É daquelas profissões que necessita de vocação, alguma coisa que faz o click, confidenciou-me um dia Miguel Quintão. Nem todos temos essa capacidade e vocação. Falar ao microfone é uma actividade que exige rigor e profissionalismo e, portanto, deverá estar reservada a quem tem um talento inato para isso (que são poucos) ou quem se especializou para o fazer. Da mesma forma que nem todos poderemos ser um chef de cozinha ou um contabilista. São exemplos que procuraram corroborar a ideia de que, à aptidão, se junta a formação específica para desenvolvermos uma determinada actividade profissional. E, ainda que projectos não profissionais de rádio possam fazer sentido, especialmente no contexto actual, da rádio na Internet, não é desse tipo de rádio de que aqui falamos. E, portanto, para além de, nessa altura, a rádio ter sido inundada de amadores, que embora apaixonados pela rádio não eram necessariamente bons locutores (sequer bons comunicadores) a rádio viu-se também perante um fenómeno de excesso de oferta que não tinha compatibilidade com a procura. Isto equivale a dizer que passámos a ter mais estações de rádio do que aquilo que é possível a audiência do país ouvir e, portanto, assistiu-se também a uma espécie de selecção natural das espécies, em que venceram os melhores: as estações melhor preparadas, com maior capacidade financeira, equipas mais criativas, mais dedicadas, no fundo, profissionais. E, quando a situação estabilizou, eis que o fenómeno da concorrência não ficou por aqui. Perante um cenário em que continuavam a existir mais estações de rádio do que aquelas que a audiência podia escutar, as estações começaram a concorrer entre si. E, para uma competição adequada, a rádio necessita de bons conteúdos. Para ter bons conteúdos tem de ter bons profissionais que os produzam. Bons profissionais não trabalham na rádio em tempo parcial, não são contabilistas durante o dia e locutores à noite ou, sequer, trabalham apenas por amor à camisola (embora na generalidade, os profissionais da rádio sejam, de facto, apaixonados pela rádio). Ter bons profissionais na rádio implica um trabalho contínuo, de 24 sobre 24 horas, formação e constante aperfeiçoamento das suas capacidades de locução ou produção. Assim, qual a forma mais simples e mais barata para se fazer rádio? Exactamente. Encadear discos, pôr música a tocar e dar-nos, a nós, ouvintes, a sensação de que é isto que nós desejamos ouvir na rádio. Que não queremos conversa, que não queremos palavra na rádio, que não queremos que nos digam quase nada para além do essencial, que a rádio é um gira-discos e que é para isso que serve. Nada mais errado. Talvez por isto, durante tantos anos a programação radiofónica se tenha esvaziado de conteúdo. A música é um dos elementos da linguagem radiofónica e não muito mais do que isso. Pode ser entendida como um conteúdo, desde que à música juntemos a contextualização que o leitor de Mp3 não dá. Caso contrário, a rádio não é rádio, é um toca-discos, diria João Paulo Meneses. Do ponto de vista técnico, uma rádio musical é uma rádio, mas que está ausente na sua forma, disse-me um dia Fernando Alves. Para além da música, o silêncio, a palavra e os efeitos sonoros também fazem parte da linguagem radiofónica; não são conteúdos radiofónicos em si mesmos, são elementos que compõem a estrutura de comunicação da rádio. É neste sentido que critico estações de rádio exclusivamente musicais, mas não a utilização da playlist porque, um locutor, que saiba fazer bom uso da palavra, não terá necessariamente de ser um melómano. Hoje, os tempos são de mudança. Desde há alguns uns anos, os directores de programas perceberam (provavelmente sempre souberam) que nas rádios exclusivamente musicais faltava alma e, ainda que não tenha sido um acto reflectido ou concertado, começaram a inserir pequenos apontamentos de palavra, modestas propostas que permitiram que a rádio passasse a ter caracterizadamente uma programação apoiada em conteúdos, que misturam a palavra com a música, como hoje acontece nas estações de maior audiência no nosso país. E são efectivamente os conteúdos com palavra, não necessariamente de palavra, os que têm maior sucesso entre nós. Mas, sobre isso, falaremos numa próxima crónica...
Paula Cordeiro
 
 
Investigadora e Coordenadora da Unidade de Ciências da Comunicação no ISCSP
 
 
(Declaração de interesses: Paula Cordeiro é actualmente a provedora do ouvinte na rádio pública. Escreve na qualidade de investigadora na área da rádio)
Este artigo não foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico
Fonte: Briefing

Mário Rui