quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cats



Miando pouco, arranhando sempre, escondendo-se algumas vezes e não temendo nunca!
 
 
 


 
Mário Rui
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Está frio, muito frio



Diabo, está frio, são três da manhã. Frio de um país que não conta com gente que o aqueça, que o valorize, e ao invés só lhe mostra o bolor das trevas cada vez mais presentes nas fundações já de si esboroadas de tantos invernos assassinos. É um frio tenebroso eivado de temperaturas políticas mandantes e mandadas que insistem em ocultar um nome temido e ao mesmo tempo desejado; corrupção. Aqui reinará o sério, dizem uns, outros compram a lotaria do dia seguinte, apostam na sorte do oculto, e quando ambos saem da loja dos acasos tudo o que se nos é dado a perceber é que compraram bilhetes deveras premiados de ardis, astúcias e falsidades. E assim fica a frieza de um país ainda e mais uma vez prenhe de tradições não desejadas mas já esperadas, mão cheia de reticências que são a chancela de um sítio de ilegalidades, de desesperanças, afinal o romance glacial autor da própria história de muito do desprazer lusitano. Não sei se somos mais que isto, mas juro que ainda podemos ser menos do que isto pois se Alcácer-Quibir já foi nódoa que manchou brio e chão de cá, névoa maldita, nada me garante que mais cerrado nevoeiro não venha de novo para depositar finalmente a redacção da nação em tumba almofadada sobre a qual os encadernadores de Portugal hão-de enegrecer o livro que vão escrevendo. Podemos estranhá-lo, mas nunca desacreditar de tal baixeza, agora ao alcance apenas de mais uma ou duas assinaturas de ultraje posto que servirão de cunho derradeiro do que foi Pátria de gente e agora definha em pêlo, em estado de completa nudez. E tenho a certeza, mesmo que me confranja, que tumba que enterre as causas ímpias do nosso falecimento, será no dia seguinte talhão onde alguns depositarão palmas, não aos restos do expirado, coitado, mas antes aos artífices dos invernos assassinos que os lá puseram. Esses mesmos, hoje, como lhes convém, estão já a preparar a placa evocativa do finamento de Portugal para lá inscrever não o nome do pobre defunto, mas sim para apagar os nomes dos respectivos artífices de tais invernos matadores. E destes últimos, na inscrição, ler-se-á; «como é sereno e radioso o aspecto dos invernos augustos e eternos que ajudaram a (a)fundar o nome de Portugal». A cena será solene, e o gato ressonará, a vela apagar-se-á, a flor murchará, o coveiro dormita e entretanto outros invernos assassinos virão. Ah, e ainda nos falta ouvir o que nunca vimos, ler o que nunca ouvimos e ficarmos pasmados com o que nunca imaginámos. Fomos e somos únicos, mas também uns ingénuos e assim nos vamos na admiração de alguns mistérios pessoais que são selo carimbado de muitos nojentos carácteres. Tenho frio, e muito medo das dentadas famintas dos invernos que arruínam.
 
 
Mário Rui
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