domingo, 19 de agosto de 2012

Do início aos avanços do mundo

















«... mudo de parágrafo para que Vossa Alteza se refaça do susto que lhe causaram meu nome e o do meu capitão. Faz parte da arte de escrever a distribuição sagaz de espaços abertos, como os jardins nas casas mouras. Assim respira o texto e respira o leitor. Toda arquitectura, de pedra ou palavra, deve ter aberturas bem-postas por onde circule o ar e cure-se a opressão, e não pretendo que esta carta seja uma enclausura onde vosso espanto procure a saída em vão, como uma freira tomada de fogos, um fantasma novato num mausoléu, ou um traque num calção. Respire, rei, e prepare-se para estranhezas. Vossos navegadores não vos deram apenas este mundo, destamparam muitos outros. Horrores e maravilhas, horrores e maravilhas ... »

Pois é. Assim pensava e escrevia um velho lobo do mar, navegador dos quatro costados que, preparando-se para achar novos mundos para o mundo, zarpou de Belém nos idos de quinhentos e ao oceano se fez em demanda de novos mundos. Lá foi mas sem que antes mais tenha dito; «... sabe também Vossa Alteza que o mais difícil das viagens não é o Mar e as suas fúrias e o Desconhecido e seus monstros, o mais difícil é sair de Portugal. Somos a raça da saudade, eternamente divididos entre o chão e o além, entre o ficar e o ir...»

Fomos e somos também a raça da ‘cisma’ que é assim um jeito diferente de ver as coisas. Uma espécie de ideia fixa ou preocupação que sempre nos ajudou na descoberta do desconhecido. Lancámos borda fora os velhos do Restelo e resplandecemos o Mundo com feitos que trouxeram novas luzes às trevas e nos fizeram grandes. Se perdemos entretanto a grandeza, ficou-nos pelo menos a mania de que continuamos em crescendo. No afoitamento, na ânsia da gesta descobridora, deixámos o Portugal agropastoril que precisava ser deixado, com sua cor de terra virada, seus tufos, seus cheiros e suas lamúrias reincidentes.

Retratámo-nos como o Portugal que precisava ir, e substituir a epopeia semanal de descobrir. Ficámos sozinhos num mar sem ondas, o Tejo sem as margens, com as velas murchas e os olhos grandes. E subitamente alguém apontou com terror para o horizonte e todos viram um rosto gigantesco com as bochechas estendidas, como os sopradores de vento que ilustram os mapas, e de tal força foi o sopro dos seus lábios quilométricos que o barco disparou sobre a água com as velas insufladas ao máximo e todos agarrados ao fixo mais próximo que os salvasse de ficar para trás, e sentimos que tínhamos sido impelidos para outro mar, ou o mesmo mar em outro mundo.

Já assim vivemos. Matámos os maus costumes e abrimos de par em par as portas por onde corriam ventos opressores e assim curámos a clausura. Enquanto alguns mediam distâncias do joelho à meia-calça nós, sim nós, já tínhamos abolido o maillot. Já havíamos descoberto o fio dental. Peça e modo único de ser e estar, também ela a mudar consciências e a marcar indelevelmente novas ‘cismas’ que, afinal, tanto deram ao mundo. Parece brincadeira de miúdo este jeito brejeiro de te tratar, Portugal. Mas não é! Nesse tempo não éramos visitantes de outro mundo mas sim encenações dos primeiros portugueses vencedores.

Nossa chegada foi saudada com fogos de artifício e bandeiradas, tiros de pólvora seca das naus e muito ruído da multidão. Desfilámos, escoltados, pelas ruas da cidade, vendo de perto a felicidade e a prosperidade de todos, e todos nos festejavam sem que para isso houvesse razão forte.

Já assim fomos.

Mário Rui