domingo, 30 de outubro de 2011

Reinventar o tempo



Um dos capitães de Abril diz que o poder foi tomado por um «bando de mentirosos» e apela aos militares para estarem ao lado da população caso se verifique repressão policial nas ruas. Vasco Lourenço acredita que os portugueses não vão aceitar a austeridade e apela aos militares para se unirem à população.
Vasco Lourenço revela-se escandalizado com promessas que o primeiro-ministro não cumpriu.


O coronel, actualmente na reserva, acredita que as medidas de austeridade vão gerar convulsão social com repressão da polícia. A confirmar-se esse cenário, Vasco Lourenço espera que os militares estejam do lado da população.
«A população certamente não vai aceitar de bom grado essas medidas [de austeridade] e eles vão tentar fazer pressão. Vamos ver como vão reagir as forças de segurança quando tentarem utilizá-las para fazer a repressão, depois espero que os militares tenham a vontade e a força suficiente para, como se passou no Egipto, dizer 'não' à repressão», afirmou.
Em declarações, à margem de um encontro em Lisboa de associações que representam os oficiais, sargentos e praças das Forças Armadas, Vasco Lourenço disse ainda ter ficado escandalizado com promessas eleitorais que o primeiro-ministro não cumpriu.



Talvez o dito coronel Vasco Lourenço tenha razão em alguns dos sentimentos que lhe atravessam a alma. Talvez sim. Mas só agora, volvidos tantos anos de incompetência, de governos que mais se assemelharam a um «bando de mentirosos», como ele próprio diz, é que constatou desta realidade? Para quem esteve no 25 de Abril, era suposto já se ter apercebido do lamaçal em que o País se meteu e, há muito, muito tempo devia ter saído a terreiro protestando como agora faz. A sua repulsa é a nossa repulsa. Só com uma diferença. É que a nós, povo simples, nunca nos foi dada a palavra que o coronel agora toma como sua. Por mim falo e, apesar de muito escrever e barafustar com este estado de coisas, nunca a TSF me deu o microfone para dar livre aso ao que sinto. Bem posso escrever, barafustar, eu e outros como eu, que jamais teremos o mesmo eco das nossas misericordiosas palavras como o senhor terá das suas com uma simples ida a um estúdio de rádio nacional. E repare que eu sei bem do que falo. Concedendo-lhe alguma razão no que pensa e diz, mesmo assim, fica-me a ideia de que todo este país mais não é que um grande sindicato de interesses, para não lhe chamar outra coisa mais grave. E para quem esteve tanto tempo calado e só agora se apercebe da quase tragédia que roça as nossas vidas, é pouco, muito pouco o que por elas fez o senhor coronel. Nós gostamos mais dos olhares e das convicções que despertam na altura certa e não no momento incerto. Agradecemos-lhe o seu alerta mas reprovamos a sua atrasada solidariedade. Pelo menos eu. Por último gostava muito de perceber, porque sou de compreensão lenta, sobretudo quando se trata de interesses militares e quiçá partidários, a que primeiro ministro o senhor se refere como sendo o que não cumpriu as promessas feitas. A mim alegrar-me-ia sobremaneira que o senhor me enunciasse aqueles que de facto as cumpriram. Devem ter sido esses todos que impediram que chegássemos ao ponto onde estamos.


Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emrgimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo.


Sophia de Mello Breyner(1919-2004)


Mário Rui

Estará o mundo em boas mãos?


A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens.
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente - até pelos indivíduos que, sendo também morais, o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tornar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém.
Fernando Pessoa, in 'Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular'

Mário Rui