terça-feira, 6 de setembro de 2011

A Oriente nada de novo



«No momento em que escrevo, manda a praxe dizer, a propósito da Líbia, que ainda não sabemos ao certo como é que tudo vai acabar. Muito mais curioso, porém, é o facto de, após vários meses de encarniçamento noticioso e analítico, ainda não sabermos ao certo como é que tudo começou. Ninguém esperava esta “Primavera Árabe”. E a primeira inclinação foi para interpretar as insurreições à medida das modas ocidentais. Tivemos assim a “revolução do Facebook”. Vamos agora, que a ofensiva militar anglo-francesa fez cair Tripoli, falar da “revolução da Nato”?
Não quero estragar entusiasmos, mas a verdade é que nada do que estamos a ver é historicamente novo. A década de 1950 também teve a sua vaga de regimes em queda no Médio Oriente. Massas de gente nas ruas e praças, a maldizer os tiranos em desgraça, são uma faceta clássica das transições políticas nas autocracias da região. Já foi assim no Egipto, em 1919. Quando um poder se esgota e cai nestas sociedades segmentadas, tudo tende a regressar ao caos originário, até emergir um novo poder. Com sorte, o intervalo poderá compreender fases de guerra civil “suspensa”, como no Líbano ou no Iraque de hoje. Se quiserem, chamem-lhes “democracias”. Com a islamização em curso, não serão provavelmente seculares — o que não quer dizer que tenham de ser “jihadistas”.
Desde o século XIX, estas transições suscitaram por vezes promessas e expectativas de eleições e parlamentos (a primeira constituição da Tunísia é de 1861 e a do Egipto de 1923). Desta vez, a referência democrática tem mais esta razão de ser: os rebeldes perceberam a importância do patrocínio das potências ocidentais, cuja linguagem, por isso, precisam de falar. Daí, aliás, o esforço dos islamistas para passarem despercebidos. A mão do Ocidente, através da Nato, tem sido muito visível na Líbia. Mas a Líbia não é uma excepção. Até agora, os regimes derrubados foram os mais vulneráveis, pela sua dependência financeira e militar, à pressão ocidental (caso do Egipto). Os manifestantes da Praça Tahrir, tal como os guerrilheiros de Benghazi, resistiram e avançaram à sombra do Ocidente. Aquilo que fez a diferença no Irão em 2009 e o que distingue a Síria hoje é a improbabilidade de, nesses casos, o Ocidente ser efectivo ou esforçado.
Em suma, uma época de transição entre “sultões” no Médio Oriente conjugou-se com uma recaída do intervencionismo “humanitário” inaugurado por Clinton na década de 1990 e continuado por Bush em versão neo-conservadora. A questão é esta: porque é que o ataque da Nato contra a Líbia não mereceu as polémicas da guerra do Iraque? Em termos de “comunidade internacional”, esta intervenção também dividiu (a Alemanha escusou-se) e não foi menos “ilegal” (o “mandato” da ONU só serviu para ser abusado). Mas não vimos a esquerda marchar contra um “novo Vietname”, nem a direita mobilizar-se para um “choque de civilizações”. Porque Obama não é Bush? Porque não há infantaria americana no terreno? Porque o povo de Benghazi parecia em perigo, como os kosovars em 1999? Talvez. Voltámos assim, politica e militarmente, à época das campanhas da Nato contra a Sérvia. Enfim, nada de novo.»



Rui Ramos in Expresso

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