terça-feira, 21 de julho de 2015

De outrora

 

De outrora - e não há senão uma ténue fronteira à qual facilmente se fecham os olhos, entre a recordação bondosa, meiga e gentil do que foi e do que é.

Gratos beneficiários dessas lojas onde não só se percorriam recomendações mas também paixões que vinham do desfrutar de coisas novas e diferentes, era desse modo que se comercializava no tempo de antanho. A cada manhã a loja vestia roupas novas em folha e mesmo que isso fosse apenas imaginação de menino de pouca idade, era sempre um gosto poisar os olhos nos antigos armários de madeira, nas simétricas tulhas para cereais e legumes secos, nas antigas bilhas de azeite, em metal. Quando o instante tocava a matar a sede às almas cansadas que lá pelo fim da tarde ancoravam em porto seguro, então falava-se em almudes e cântaros eles mesmos bem acantonados na adega não fosse secura forte atrever-se em demasia. No balcão de lousa, mais modestos mas nem por isso menos desafiadores, o quartilho, o meio quartilho e ainda uma panóplia de medidas mais pequenas, convenientemente aferidas e seladas com um selo próprio de estanho, a curto prazo eram promessa de compromisso bebedor, primeiro, e só depois falador entre pares. O funil, sei lá eu porquê, mas também a cantarinha, levavam o mesmo cunho oficial cuidando-se talvez das sobras mal medidas que porventura fariam bem ao dono mas mal ao cliente. Enfim, na loja alternavam-se os períodos de alta e baixa e uma ou outra vez havia que jogar na noção do lucro mais gordo e fácil pois gerir uma casa assim não era coisa simples. Importava era que a marosca se fizesse de modo verdadeiramente purgado de conotações perturbadoras e preocupantes para o cliente. Era mística própria e os prazeres do convívio tudo desculpavam. Então e os sólidos? Ah, esses entravam ao alqueire na loja, como o pão, ou às arrobas como as batatas, ou ainda ao quarteirão feito vinte e cinco sardinhas. Tudo verdadeiros parentescos com a clientela e tempos de então, tudo engajamentos mútuos mesmo que muitas vezes não completamente românticos ou limpos. Mas fáceis de usar, compreender e manusear por ambas as partes. A época era outra, nem melhor nem pior, simplesmente diferente mas, talvez, arrisco, mais autêntica, menos pesada, mais lenta e por isso menos confusa. Não se pense que era vida fácil para quem vendia e sequer para quem comprava. Não, não era, para todos virava vida difícil mas a par disso também havia prodigalidade de experiência humana e uma sabedoria que se aprendia. Era assim a loja dos que nos foram chegados, um período do nosso tempo com relação aos factos de certa natureza que nele aconteceram.


Mário Rui
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