quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ria de Aveiro



 
Já houve tempo em que atravessar a Ria de Aveiro também era coisa para se fazer com braçadas longas vindas de corpos afoitos que se lançavam à água. Braçadas fortes, não tanto para ganharem taça que não tentava sequer passar por champanhe, mas antes porfia prazenteira. Nadar, nadar sempre, como se se tratasse de iludir um invisível perseguidor. Era o tempo em que a água ia farta, a perder de pé, e a travessia era distância onde se distinguia o cintilar longínquo das ondulações. Hoje, resta-me a resignação de fel do quotidiano que vejo. E faço por esquecer, ignorar, soltar as amarras que me prendem a esta talvez doentia obsessão de não compreender onde estão os que deviam dar uma mão à Ria, um olhar que fosse. Devia talvez, acima de tudo, impedir-me de pensar. Mas não posso. Quando assisto a tanta manifestação ciclável, tanta vontade de pôr um país em cima de um selim, não que esteja contra mas só porque já me começa a cheirar a manifestação reservada a um enorme bolo sem velas, e assim esquecendo a nossa Ria de charmes e sorrisos, só me posso indignar. Já tem pouca água, sobeja agora menos distância, mais silêncio, mais vazio e ainda mais lodo em sítio que devia ser cama de água. Sinto que tudo falhou, sinto que a Ria de Aveiro nunca mais vai ser o que tinha querido ser, sinto o seu destino transformado num descalabro sem regresso. E sinto ainda mais; o seu charme e sorrisos de antanho, circulando entre os seus milhares – talvez milhões – de convidados, são hoje porta sem saída pois a de entrada há muito que está fechada. A regeneração resume-se, até agora, a uma chuva de conselhos ditos mas nunca feitos e é por isso mesmo que repito, repiso e quero prestar quotidiano testemunho do fracasso disfarçado! Mas como o futuro tem inesperadas formas de se vingar, talvez um dia nademos, pesquemos e comamos montados em bicicleta que há-de rolar em mais uma via em sítio que outrora foi Ria. Talvez depois nos interroguemos; não há ninguém em quem pendurar a culpa? E não sou contra a bicicleta, embora isso desse jeito a alguns. Sou é contra a voluptuosa catalepsia mental que faz soçobrar a Nossa Ria!

 

Mário Rui
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