quarta-feira, 13 de março de 2019

Cais de Salreu: ninguém vive sem mudança

 
Bem sei que, se por mero acaso, ou, sei lá, se por genial golpe de asa da ciência, alguns dos nossos antepassados pudessem voltar ao nosso convívio, estariam hoje a dizer:

 - Meu Deus, que pedaço de natureza, solta e sem lógica, é esta?

 - Que cais é o de agora que perdeu a paciência de suportar os nossos barcos?

 - E o nosso sal? O que lhe fizeram? O moliço? Desapareceu?

 - E o todo chilreante da pardalada? Calou-se? E o arrozal? Saiu do horizonte?

 Outros perguntariam:

 - O que fizeram das nossas roupas que se nos colavam ao corpo respirando? Onde estão os nossos pés e mãos de irrepreensível trabalho? O ar antigo já não cheira a marés?

E chegariam ainda os mais afoitos, adiantando:

- Roubaram-nos as pranchas, até muitos quilos da cabeça nos tiraram.

- Já nem trabalho de habilidades, torceduras, incertezas de trapézio, arranhões, tudo acabou.

- Mesmo o corpo de ferro, as mãos com medalhas de calos, alguns decilitros a mais, foram-se.

E, nós, hoje, se os víssemos passar, certamente perceberíamos tantas dúvidas pois por atremadas seriam certamente.

Mas o mundo tem o hábito de tecer quimeras.

Às vezes, esperanças realizadas.

E é por isso que o mundo muda.

E mesmo que ao sol, à sombra, ou mesmo no travesseiro façamos silêncios de pensadores, o mundo deve mudar.

Ainda que casmurros mas sempre benévolos, lá lhe vamos descobrindo algumas virtudes tocantes, virgindade de afeições, traços de carácter generosos.

Sem pieguices mascaradas, podemos hoje traduzir contos de outrora - ás vezes lindos, às vezes também menos gentis, mas que essa não seja razão para que nos furtemos aos prazeres da surpresa, aos agradecimentos e às carícias da transformação.

Afinal, até a mudança muda e o mundo é o que é a cada momento.

O cais, esse esteve lindo num qualquer dia de despertar simpatias.

Se serviu para iludir saudades? Não!

A saudade é um som que reclama um eco e, se for novo, diferente, pode ajudar-nos a perceber de quantas incertezas somos feitos.

Sobretudo quando nos segreda histórias de tantas continuadas fadigas da vida no cais nascidas mas também das nascentes.

Já andava para dizer isto há muito tempo.
 
 
Mário Rui
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