domingo, 12 de abril de 2020

Temos pena


Temos pena. O mundo já não vai ser o que era. E com o cotovelo apoiado sobre o joelho, e a cabeça à palma da mão, fico-me por algum tempo esquecido com os olhos fixos na imagem que vejo. A menos que venha um novo elixir que nos livre de perder o centro de gravidade neste plano instável em que estamos, acho que bem podemos adiar as nossas radicadas convicções de mergulhar noutras águas que tão bem nos sabem. E o juramento de fidelidade a essas, este ano, vai mesmo por água abaixo. A alegria das ondas queridas, o sol que beija a areia, a grandeza da sua estatura que dá bronze a corpos precisados de divisa social, os passeios alheados à beira-mar, a maresia que tonifica, a brisa que girando no tronco nu nos insufla entusiasmo, este ano, será por certo ambição sonhada mas lamentavelmente com destino a um qualquer exílio. Não vai haver pincel nem cor que a possa fixar na tela. E o quadro assim acabado não vai ter direito a especiais homenagens. Que raio de gravura que só nos impõe a consciência de ter sido feita por quem nos quer mal. Por mim, afasto para bem longe a curiosidade em saber a cor desse medo. Mas mesmo postos na ratoeira desta liberdade, há uma portugalidade muito nossa que é feita de amenas cavaqueiras, de gestos afáveis, de sorrisos amplos, mas também de ameaças, pois claro, contra quem nos quer tirar o mar ou a delícia do nosso sol.



Mário Rui
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