domingo, 23 de outubro de 2022

O "QUIM ANÃO"


Bem sei que é algo longo este escrito do A.M. Lopes Rodrigues, publicado no jornal “O Concelho de Estarreja” em 26 de Janeiro de 2021. No entanto, vale a pena ler o que ele diz. Sobretudo a propósito da figura do Quim Anão, meu vizinho, e com quem tantas vezes conversei. De quando em vez, quando se portava mal, lá vinha o meu avô materno pôr o Quim nos eixos, tais eram as malandrices que fazia.

«Em todas aldeias ou povoados de pequena dimensão espalhados por esse mundo há sempre a figura a que os franceses chamam com graça e carinho «l´idiot du village», um personagem normalmente caracterizado por um atraso mental a quem se permite tudo, se perdoam as faltas, se acha piada, se trata com carinho.

Estarreja usufruiu durante muitos anos do inolvidável Quim Anão - sobre quem o Sérgio Paulo escreveu magnificamente como é seu apanágio - de quem existe uma excelente fotografia do António Lisboa, fotografia essa que nos recebia com honra logo à entrada do seu estabelecimento.

A propósito, estou a lembrar-me que conheço variadíssimas cidades onde são imortalizadas no bronze ou na pedra e em lugar de destaque figuras características ou lendárias que fazem parte do seu acervo cultural.

Recordo, por exemplo, a enorme estátua dos músicos de Bremen (um burro, um cão, um gato e um galo, uns em cima dos outros) que são personagens de um dos contos dos irmãos Grimm (curiosamente avoengos de uma minha prima por afinidade) ou a pequena Sereiazinha (sentada numa pedra à borda do porto de Copenhague), também ela centro de um conto do meu predilecto Hans-Christian Andersen quem, no século XIX, viajou por Portugal e deixou um belo livro com a descrição da sua deriva por estas bandas.

Sendo que vem de longe que Estarreja nunca prestou as devidas honras aos cidadãos autóctones que ficaram na sua memória (quando eu era miúdo ouvia de quando em quando o refrão local que rezava que Estarreja é má mãe e boa madrasta querendo-se com isso dizer que ignorava os da casa e mimava os de fora que acolhia de braços abertos) servindo de exemplo dessa aberração o facto de ter sido precisa a iniciativa do Rotary Club para que o grande Francisco Barbosa tivesse um busto na praça a que dá o nome.

Ora tendo sido o Quim Anão alguém que foi marcante, à sua maneira, no historial de Estarreja talvez fosse interessante que se lhe prestasse uma pequena homenagem consubstanciada numa estatueta, pequerrucha que fosse, que o imortalizasse para os que ainda o conheceram e o dessem a saber aos que não e aos vindouros.

E acreditem que o estou a dizer com toda a sinceridade!

Talvez fosse mais apropriado que esse busto comemorativo de uma personalidade tão controversa como Simão Bolivar cuja única relação com Estarreja é ter lutado pela independência de um país (que já foi riquíssimo e agora se arrasta numa espiral de ablecta miséria que parece não ter fim) que recebeu muitos conterrâneos nossos e se foi essa a motivação (que creio que foi) e já que estamos nessa, então vamos lá a pôr estátuas de George Washington, do imperador D. Pedro do Brasil, do General De Gaulle, do Chanceler Adenauer e sei lá quantos mais que também nos deram casa e proporcionaram meios de fortuna.

Mas para além do tal «idiot du village», todas as terras têm ou tiveram no seu seio figuras que, não cabendo nesta designação, se consideram típicas e recordo uma de quem vos vou contar uma pequena historieta.

Durante a minha juventude encontrava frequentemente, principalmente ao fim da tarde, o Zé Mulato.

O Zé Mulato era um sujeito pacífico, cordato, afável e divertido, morador numa casa modestíssima, de acordo com a sua condição, lá para os lados da Arrotinha, com a sua mãe (uma senhora negra, viúva, de trato simpático e muito agradável nas suas tristeza e humilde pobreza) e lá ia sobrevivendo como podia sem trabalho fixo e aproveitando-se de uns pequenos biscates aqui e ali, ao serviço de quem o chamasse.

Ora, em determinada altura, veio viver para Estarreja para trabalhar no Amoníaco Português como encarregado da biblioteca da fábrica, um tal Capitão Valadas, criatura desagradável e de mau feitio que não deixou saudades a ninguém quando desapareceu da circulação.

Vivia num prédio onde viria a ter a sua sede a Casa do Pessoal da Cires mesmo por cima da residência do Sr. Francisco Moura.

Um belo fim de tarde, quase ao anoitecer, o Zé Mulato descia ziguezagueando a então Rua da Vila, acabadas as suas libações de fim de tarde naquele estabelecimento cujo nome não recordo mas que era um misto de taberna, salão de jogos de matraquilhos e quejandos e “casa de virtude” que havia ao começo dessa artéria, quando, inopinadamente tomba em cima do majestoso Studebaker negro do Capitão Valadas que, felizmente, circulava vagarosamente já a dois passos de casa.

Desaustinado, o Capitão Valadas sai do carro e interpela desabridamente – diga-se que com razão quanto aos factos que não aos termos - o Zé Mulato pela sua falta de cuidado e atenção.

Se havia coisa em que o Zé Mulato não era peco seria na sua bendita língua e vai daí, a impropério responde com impropério.

Do alto da sua arrogância o Capitão Valadas pergunta-lhe se sabe com quem está a falar e declina a sua identidade ao que o Zé Mulato responde altaneiramente:

- Ai é o Capitão Valadas? Pois eu sou o Santos Costa!

Ó Zé Mulato!, o que tu foste dizer!

Falar no Santos Costa ao Capitão Valadas era o mesmo que falar de corda em casa do enforcado dado que o sujeito - não sei porquê nem nunca me interessou - tinha sido expulso do Exército com desonra pelo então Ministro da Guerra Santos Costa que não era nada meigo no exercício das suas funções.

Vai daí, o Capitão Valadas não é de mangas e arrasta o Zé Mulato para o posto da Guarda Republicana onde pontificava o “terrível” Cabo Santos (de quem pessoalmente guardo muito boa memória) apresentando queixa por injúrias.

O cabo Santos dá uns apertões ao Zé Mulato que tivera a ousadia de se mal comportar com uma individualidade tão importante como o Sr. Capitão e, para levantar o respectivo auto, pede-lhe o Bilhete de Identidade, solicitação a que o Zé Mulato corresponde sem pestanejar.

Documento na mão, o cabo Santos examina-o atentamente, olha para o Capitão Valados, olha para o Zé Mulato, torna a olhar para o Capitão Valadas, mostra-lhe o BI do Zé Mulato e, com o ar mais desconsolado desta vida, põe-lhe a questão:

- Meu Capitão! O homem diz a verdade! Que é que o meu Capitão quer que eu faça?

Bem escarrapachado na linha adequada constava o nome do cidadão: José dos Santos Costa.

O Zé Mulato era mesmo o Santos Costa (outro que não o do Capitão).

Furibundo, cheio de raiva, e a deitar fumo, lá foi o nosso Capitão para casa e o Zé Mulato fez o mesmo não sem antes ter passado pela Cova Funda para se confortar».

(Lopes Rodrigues)


Mário Rui
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