sábado, 22 de janeiro de 2022

“O que é tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei”

“O que é tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei”.

(Santo Agostinho)

Tenho um relógio que se farta de me chatear. Se adormeço, acorda-me, se estou acordado começa a bordar um estirado sermão sobre cobertores. Julgará ele que valem mais os seus vícios do que as suas qualidades? É mais rigoroso do que quatro praças da guarda republicana e o oficial de justiça, que por acaso nunca me chatearam. Até os ponteiros parecem que todos juntos se erguem contra mim. Vem uma hora, vêm duas, vêm três e nunca mais a coisa pára. Alongam-me o passado, encurtam-me o resto que me falta. E quando me apanho no largo, ainda aquele compasso me parece a lembrança de um tempo ido e de um futuro ignorado. Um intrujão destes dava por certo um óptimo redactor. Sabe tudo das nossas vidas. E o curioso, ainda por cima, é que não há um ajuntamento, um quarteirão, uma rua ou um campanário que não tenha tido um relógio por companheiro. Muitos o tiveram de herança, outros o alcançaram por trabalho ou sorte. Quem sabe se não foi uma hora má de aborrecimento, de tédio ronhoso, a inventar o marcador de tempos? É que a partir de uma certa hora, o que não está no livro dos destinos, está seguramente no mostrador daquele que repete minutos. Nada o detém. E eu, que já me esqueço de quase tudo, fico-me a considerar se ainda vale a pena saber quanto tempo o tempo tem. O mais das vezes ele desmancha, nega, afirma, contradiz, rebate e inventa, também à custa do relógio, que o que quer é que a sua fama não se estrague. À uma por causa da tradição, à outra porque estragada a fama lá podiam vir dois feriados em cada semana, coisa que negaria o acerto que julga ter pois que, afinal, dias e bocados de tempo consensualmente tidos como úteis, só mesmo o sábado e o domingo. E, se cortada essa tradição ao relógio, elevado desde sempre a tanta autoridade e poder, de certeza que depois apenas lhe restariam horas, dias e anos de cruéis desapontamentos. Ademais, hoje, tão acostumados que estamos à nossa contagem do tempo, podemos até não perceber a complexidade dos feitos dos nossos antepassados.


Mário Rui
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