domingo, 9 de abril de 2023

O PARTO NO TÁXI

Um dos textos daquele que foi o melhor médico (na circunstância ginecologista) que encontrei em toda a minha vida. Mostrou a luz do dia aos meus filhos e, como Homem e profissional, foi pessoa de afagos nas mãos, a certeza na boca, a meiguice no semblante, o pensamento na fronte. Custa-me que a Providência lhe tenha mandado despir a bata, as armas da sua profissão, o seu saber e sobretudo a sua natureza humana. Estou-vos abrindo um pouco do livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade desta versão rigorosa de uma das suas páginas de vida, com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como acto de fidelidade a quem deu aos meus um mestrado de humildade e competência como nunca antes (e depois) tinha visto. E de uma qualidade, ao menos, me posso abonar a mim mesmo: a de exacto e consciencioso no expender e narrar sobre um ser inigualável, a quem muito fiquei a dever. (23 de Janeiro de 2023)

Mário Rui

O PARTO NO TÁXI

Trabalhava eu numa Casa do Povo em 1968 em que dava consultas a numerosos doentes que aí acorriam. Uma bela tarde, a funcionária entra pelo consultório dentro, afogueada, com voz ansiosa e diz, interrompendo a consulta que eu estava a fazer:

- Senhor doutor, senhor doutor, está uma mulher a dar à luz no táxi, aqui em frente.

Não havia alternativa. Levantei-me de imediato, disse-lhe para chamar a enfermeira a quem pedi o material necessário para a resolução daquele parto no táxi. Um parto no táxi. Só visto…

Saí do consultório, ainda sinto o cheiro daquele outono a terra molhada. No Outono as cores das árvores e das de folhas são muito bonitas, umas verdes outras amarelas outras castanhas outas vermelhas. Ao recordar-me dessa época, vejo, como se fosse hoje, ainda aquela latada de videiras em frente à Casa do Povo, já com folhas secas, sem uvas, que tinham sido vindimadas e transformadas em vinho.

Dirigi-me para o táxi, ali mesmo em frente ao posto médico, desci as escadas e tinha a sensação de que estava a caminhar há longo tempo, de que tinha andado durante horas.

Sabia o que tinha que fazer mas sentia medo do que pudesse acontecer naquele parto sem condições e não sabia o que se iria surgir alguma complicação, uma vez que não tinha meios para socorrer em caso de necessidade. Mas por outro lado, como médico e com alguma experiência em Obstetrícia, eu seguia em frente, como se estivesse no cimo de um monte, a ver nascer o sol e vê-lo andar em direcção ao horizonte. Só Deus sabe a ansiedade e a angústia de ir entrar naquele táxi, onde uma criança estava a nascer. Chegado ao táxi, o taxista não deixou de me censurar:

- Ó senhor doutor, entre depressa que a criança está a nascer.

Eu lá entrei a mando do taxista, que até perecia que era quem percebia do assunto. Tudo naquele momento, para mim era pesado e muito intenso.

Uma vez no táxi, a tratar do parto, tudo se tinha tornado claro, já nada era o destino, nem o taxista, era eu que comandava tudo, era eu o responsável de tudo e de tudo o que pudesse acontecer. A situação era tão bizarra que gostaria de não ser eu a estar ali, porque já nada se sobrepunha a mim, já nada me substituía. Daí em diante eu é que seria o responsável de tudo o que acontecesse.

Apoderou-se de mim uma solidão imensa, que me deu um grande mal-estar, uma espécie de vazio onde eu nem sabia como me mexer. Naqueles momentos eu só podia contar com as minhas forças. Estava eu dentro do táxi a ajudar o parto daquela parturiente e percebi, então, que tinha que ser eu a dar solução às dificuldades apresentadas. Tinha de me sentir forte, apesar das contrariedades com que me deparava.

Aquela cabeça pequena saindo do ventre daquela mãe, com cabelo escuro, a mãe a dar gritos a cada contracção uterina, obrigaram-me a fazer aquele parto, com o “mirone” do taxista, sempre a espreitar com a boca aberta de admiração, que ainda hoje recordo.

Estava a meu lado a enfermeira da Casa do Povo.

Lá nasceu aquele rapaz com 3,650  Kg.

Depois foi suturar a pequena laceração que a mãe teve com o parto, mas sem antes assistir ao dequite, que o mesmo é dizer, fazer sair a placenta para que tudo ficasse completo.

Felizmente, apesar das contingências, tudo correu bem. Filho e mãe ficaram bem. Enquanto fazia aquele parto no táxi, tinha ali especado o taxista de boca aberta, e a enfermeira a dizer-me coisas que não se coadunavam com a emergência da situação, porque queria mandar a mulher para o hospital mais próximo com a cabeça do bebé, já, cá fora.

Ouvia o rumor de vozes de gente que se aglomerou à volta do táxi, espero que a dizerem bem da minha actuação, ouvia o ladrar do cão mais abaixo na aldeia e o badalar do sino a dar as horas, 4 horas da tarde. Foi nessa hora em que aquele bebé veio ao mundo.

Sentia alegria sim, mas não euforia nem exaltação, nem me considerava mais sábio. O que havia dentro de mim naquela hora era uma serena paz de ter cumprido o meu dever e de ter ajudado aquela mãe a dar à luz o seu filho naquele táxi.

Depois de tudo passado, eu já não me apetecia sair do táxi.

O táxi era meu… Eu era agora o dono daquele táxi, como se este fosse uma clínica em que nasciam bebés. O taxista que se lixasse, ficava lá fora. Ele já não mandava nada. O táxi era a minha clínica naquele momento.

Agora tudo era bom, leve e mágico. Apetecia-me ficar ali para sempre, a festejar aquela vitória dum parto num táxi, como que a viver a vida no seu momento mais sublime. A felicidade traz sempre ou por vezes, desejos contraditórios. Foi por ter estado sob grande pressão pela falta de condições e meios que depois de tudo acabar bem a vitória tem um sabor muito sublime. Tudo foi naqueles minutos árduo e intenso. Tudo para mim se tinha tornado claro e difícil. Mas nem tudo o que acontece é fruto da nossa vontade, é-nos imposto e temos que lhe dar saída. São as contingências da vida.

Este pensamento andou comigo até à manhã do dia seguinte. Sonhei com esse parto no táxi, acordei várias vezes nessa noite, mas de manhã encontrei-me, de novo, com a realidade da vida e do mundo. Voltei a viver o meu dia-a-dia como se nada tivesse acontecido no dia anterior.

Dr. António Bacelar Antunes


Mário Rui
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